Cerca de 70% da água doce do planeta é utilizada na agricultura. Na China e Índia, essa proporção se aproxima de 90%. Em 2002, mais de 30 países já revelavam restrições na disponibilidade de água para múltiplas finalidades. Estima-se que em 2050 este número poderá atingir 55 países, a maioria em processo de desenvolvimento. A previsão de escassez hídrica e a degradação dos solos deverão se constituir nos principais obstáculos à produção de alimentos, fibras e energia renovável.
As previsões preocupantes em relação à disponibilidade de água associadas ao elevado uso na agricultura irrigada deveriam motivar pesquisas para enfrentar essa realidade. Porém, ainda prevalecem dimensionamentos baseados em dotações irrestritas de recursos hídricos, ao invés de induzir restrições hídricas intencionais e seletivas para racionalizar o uso na produção agrícola e aumentar a disponibilidade para outros usuários.
A incorporação de conceitos atuais como “irrigação deficiente”, “efeitos compensatórios de déficits hídricos moderados nas culturas” e “inclusão da eficiência de uso de água na avaliação da irrigação”, decisivos para assegurar a sustentabilidade da agricultura irrigada, não consegue sensibilizar muitos técnicos, que ainda praticam conceitos desgastados de dotação hídrica irrestrita. Tais conceitos comprometem o potencial de armazenamento da água de chuva nos solos irrigados, capaz de resgatar a uniformidade de distribuição espacial e reduzir o escoamento superficial que acelera processos erosivos, degrada o solo e a água, agravando o assoreamento em mananciais.
Outras vezes, as sugestões trazem argumentos polêmicos. É amplamente reconhecido que os sistemas de irrigação por gotejamento, constituídos por componentes de qualidade e adequadamente dimensionados e operados, revelam um enorme potencial para economizar água em culturas adaptadas. Entretanto, a ausência desses atributos pode reduzir o desempenho desses sistemas a níveis comparáveis, ou até inferiores, aos sistemas tradicionais por aspersão ou superfície. Não se deve ignorar o elevado custo de investimento e a exigência de qualidade da água para assegurar um desempenho satisfatório, requerendo um eficiente sistema de filtragem que aumenta os custos e o consumo de energia. Considerando que a água de irrigação provém, quase totalmente, de recursos hídricos superficiais e, portanto, rica em material sólido em suspensão, pode-se antecipar o rigor no dimensionamento e a frequência da retrolavagem dos filtros, necessários para assegurar um funcionamento adequado do sistema. A substituição de gotejadores obstruídos representa a única onerosa alternativa capaz de reconstituir o sistema de irrigação avariado, agravado ainda pelo descarte prematuro de um material dificilmente reaproveitado ou reciclado.
Para incentivar a irrigação localizada compara-se o desempenho com sistemas de irrigação por superfície, executados em condições desfavoráveis e sem orientação técnica. Ignoram esses argumentos que, em condições favoráveis de solos e topografia, os sistemas por superfície podem revelar desempenhos comparáveis aos mais sofisticados sistemas de irrigação localizada. Além disso, utilizam a gravidade terrestre para distribuir a água na área irrigada e, portanto, podem dispensar estações de bombeamento ou reduzir muito suas dimensões e o consumo de energia. Operação simples, facilmente integrada às expectativas dos irrigantes que, quando adequadamente orientados, tornam-se competentes gestores em seus projetos.
A irrigação por superfície é ainda extensivamente praticada no mundo, com percentuais superiores a 60%. Nos Estados Unidos, estão presentes em 9 milhões de hectares, o dobro de toda área irrigada brasileira. No Estado de Nebraska, onde se instalaram os maiores fabricantes do sistema automatizado pivô central, irrigam quase 1 milhão de hectares de milho e soja. Logo, os critérios para avaliação do desempenho de sistemas de irrigação deveriam ser revistos ou ampliados, sob a crescente demanda por sustentabilidade, notadamente em condições de ocorrência de chuvas durante a estação de cultivo. Assim, por exemplo, a possibilidade de trocar as perdas de água no final dos sulcos por acréscimos de área irrigada, que mesmo apresentando alguma deficiência hídrica intencional, favorece aspectos econômicos e ambientais.
Finalmente, não se deve desprezar o fator econômico. É possível demonstrar sistemas de irrigação por superfície em operação, com sulcos de 120 m de comprimento, a um custo de investimento avaliado em R$ 500,00 por hectare, que corresponde a cerca de 5 a 10% do valor investido em sistemas comerciais de irrigação localizada. Aumentando-se o comprimento dos sulcos, em solos e topografias mais favoráveis, o custo será proporcionalmente reduzido. A facilidade operacional e a possibilidade de incorporar fertirrigação, também de baixo custo, utilizando fertilizantes comuns, e até mesmo orgânicos, tornam o sistema adequado para agricultores descapitalizados, praticantes de agricultura orgânica ou tradicional, e satisfazem as exigências ambientais da sociedade.
Os argumentos utilizados para se promover sistemas de irrigação que, apesar do elevado potencial de desempenho em culturas adaptadas, revelam maiores custos e exigências operacionais, podem desestimular o interesse dos irrigantes, que continuarão procedendo segundo suas convicções e conveniências. Talvez fosse mais recomendável considerar, primeiramente, sistemas de irrigação mais acessíveis, que corrijam comportamentos comprometedores, identificáveis em projetos desprovidos de orientação técnica competente. Assumindo este desafio, evitaríamos transferir a responsabilidade de se obter um melhor desempenho nos projetos às empresas fabricantes de equipamentos de irrigação e demonstrar nossa competência, aliada ao desejável envolvimento dos irrigantes, nesse inadiável compromisso de sustentabilidade na agricultura irrigada.
|