Pode-se dizer que a carne de capivara, produzida em sistemas de criação ou proveniente da natureza, ainda é uma incógnita quanto ao conhecimento dos fatores que alteram o seu sabor. Apesar de se inserir em um mercado de carnes de caça, que normalmente são de sabor mais característico e forte, a carne de capivara pode ir de um extremo ao outro, podendo ser excelente, como na maioria dos casos é a produzida em criações, ou ser repudiada como é a maioria dos casos, se proveniente de animal da natureza. Embora a carne proveniente da natureza possa também apresentar, por vezes, excelente sabor, na maioria dos casos isso não ocorre, o que tem gerado preconceito em relação à carne, prejudicando o marketing da carne produzida em criações.
Alguns, como pesquisadores do INTA (Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária – Argentina), que trabalharam em sistema intensivo de criação, afirmam que, com a criação sob concentrado e forragem cultivada, o sabor da carne de capivara é completamente modificado para melhor em relação ao animal do ambiente natural, prospectando o seu potencial para consumo em massa, porém estando condicionada a grandes desafios no que tange às técnicas de criação e à domesticação. Estudos da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz) demonstraram que não houve diferença para sabor entre carne de capivara produzida em sistema intensivo à base de ração (rolão de milho e farelo de soja) e capim-elefante, com as carnes tradicionais. No criadouro da Embrapa Clima Temperado pôde-se comprovar a excelente e mais uniforme qualidade que a carne de capivara pode ter, em relação à proveniente de animais da natureza, quando produzida em sistema semi-intensivo de criação, tendo o milho como base da alimentação concentrada.
Em condições naturais as capivaras se alimentam predominantemente de pasto nativo, além de incluírem na dieta espécies que seriam incomuns para outros herbívoros, tais como vegetação aquática (espadana ou palha de banhado e aguapés p/ ex.), arbustos e cascas de árvores. Recente trabalho na Colômbia mostrou que a carne fresca de capivara (não informado se de criadouro ou da natureza) tem uma boa penetração entre as classes de menor poder aquisitivo, na Colômbia, onde a carne de animais caçados normalmente é consumida na forma de charque, com notas de 4,09 para sabor em uma escala de 1 a 5. Embora a carne assim obtida seja um produto totalmente orgânico, tal como ocorre na Venezuela, onde a carne de capivaras caçadas é comercializada na forma de charque, não há uniformização de sua qualidade sensorial quando obtida diretamente da natureza, considerando-se a sua forma in natura, para conquistar mercados no Brasil, onde o Ibama só permite a comercialização de animais com origem de criadouros, e o consumo se restringe, inicialmente, às classes de maior poder aquisitivo, devido ao elevado preço de venda.
Independente do sabor, a qualidade nutricional da carne é superior à das espécies domésticas de carne vermelha tradicionais, pela riqueza em ácidos graxos ômega-3, principalmente em ácido αlinolênico ω-3, e pelo grau de insaturação de sua gordura. Rico em gordura insaturada, o óleo de capivara é líquido a temperatura ambiente, devido ao seu menor ponto de fusão, ao contrário da banha de porco e da graxa bovina por exemplo. Além disso, o óleo de capivara abaixou o colesterol de ratos hiperlipidêmicos. Os ômega-3 têm papel importante e positivo nos processos inflamatórios, nas doenças autoimunes e alergias, na regulação da pressão arterial, na doença vascular coronariana, na aterosclerose e na redução de hiperlipidemias.
Sabe-se que os ômega-3 afetam consistentemente a composição da gordura que circula e compõe o corpo, diminuindo os triglicerídios, o VLDL-colesterol (Lipoproteína de muito baixa densidade), o LDL-colesterol (Lipoproteína de baixa densidade) e o colesterol total e aumentando o HDL-colesterol (Lipoproteína de alta densidade) que é a “gordura boa”, o que torna a carne de capivara mais saudável na prevenção de doenças cardiovasculares em relação às carnes tradicionais. Esses efeitos são conduzidos por meio de um complexo sistema que envolve enzimas do metabolismo de biossíntese de ácidos graxos e das lipoproteínas. Como as gorduras, especialmente triglicerídios e colesterol, não podem circular na forma pura, pois são hidrofóbicas (apolares) e se acumulariam mais facilmente nas paredes dos vasos sanguíneos, literalmente entupindo-os, o organismo as transporta associadas a proteínas, que são polares e se misturam com a água, formando lipoproteínas. No entanto a carne de capivara também apresenta ácido palmítico e mirístico que estão entre os principais precursores do colesterol, os ácidos graxos saturados de 12 a 16 carbonos. Portanto, somente estudos médicos poderiam recomendá-la como um alimento funcional.
Vários fatores podem estar envolvidos na determinação do sabor, tais como alimentação, idade, genética, tipo de corte, congelamento, sexo, perfil de ácidos graxos, etc. Como há vários sistemas de criação para a capivara (extensivo, semi-intensivo e intensivo), com diferentes níveis de alimentação concentrada, somente o conhecimento profundo e o estabelecimento de técnicas de criação voltadas a estes aspectos, além do preço de venda do produto, poderão conquistar o mercado consumidor, tornando a carne de capivara mais popular e a criação mais desenvolvida.
Um estudo da Embrapa Clima Temperado, em parceria com a UFPel, teve o objetivo de avaliar a carne de capivara obtida em sistema semi-intensivo de criação e alguns de seus subprodutos. Foi feita a avaliação sensorial da carne (sabor, cor, dureza, mastigabilidade, fibrosidade e suculência), nos cortes paleta, lombo e pernil, e de subprodutos de capivaras jovens (25 kg) e fêmeas adultas (68kg) criadas na Embrapa Clima Temperado, bem como o perfil lipídico e bromatológico da carne.
As capivaras foram alimentadas com milho e (ou) ração granulada para equinos em crescimento, ficando ou não em pastagem nativa por um mês, conforme o tratamento. Foi elaborada linguiça calabresa (não defumada) e toscana, além de salame alemão (defumado), conforme a formulação de frigorífico com inspeção estadual. Para a preparação da massa destes embutidos foi utilizada a carne de toda a carcaça acrescida de 9% de toucinho, uma vez que, mesmo tendo sido feita uma limpeza na carne de capivara, esta ainda continha muita gordura (o padrão é 15%). O salame foi analisado separadamente das linguiças para preferência. Foram preparados hambúrgueres com 15% de gordura de capivara jovem ou 15% de toucinho, utilizando-se a carne de capivara jovem ou adulta em cada uma das misturas.
As análises sensoriais e de perfil lipídico e bromatológico foram feitas no Departamento de Zootecnia e no Laboratório de Cromatografia do Centro de Ciências Químicas, Farmacêuticas e de Alimentos da UFPel, respectivamente. As análises microbiológicas foram realizadas no Laboratório de Microbiologia de Alimentos do Departamento de Ciência e Tecnologia Agroindustrial da UFPel. Para a avaliação sensorial da carne foi utilizado um painel com doze julgadores treinados. A carne foi oferecida grelhada sem sal e a avaliação foi feita atribuindo-se notas em uma escala não estruturada de 9 cm (1 = fraco; 9 = intenso). Para a verificação de aceitação e preferência de subprodutos aplicou-se um questionário a cerca de 100 julgadores não treinados com predomínio de estudantes universitários, utilizando-se escala de 1 a 9 pontos (1 = desgostei muitíssimo 9 = gostei muitíssimo), com as linguiças sendo oferecidas cozidas e os hambúrgueres grelhados.
Entre os resultados observou-se que não houve diferença significativa entre sabor da carne de fêmeas adultas (7,32) e de capivaras jovens (7,29; no segundo melhor tratamento envolvendo jovens), eliminando a possibilidade de ser o fator idade (para capivaras fêmeas adultas) o causador de sabor desfavorável, dentro do sistema semi-intensivo de criação. Os cortes não mostraram diferenças de sabor, com valores ligeiramente superiores para lombo e os valores de intensidade de sabor (7,02) foram semelhantes aos observados para ovinos.
Em relação aos subprodutos, houve uma tendência de as linguiças de capivara jovem serem mais aceitas e preferidas que as de adultos, o que não ocorreu para o salame alemão, cuja preferência foi maior para o de adulto. Para os hambúrgueres houve uma tendência de os preparados com toucinho serem ligeiramente mais aceitos, principalmente entre o de adulto com toucinho (7,47) e o de adulto com gordura de capivara (6,73), mas os resultados indicam que pode-se utilizar gordura de capivara jovem na elaboração, obtendo-se aceitação satisfatória. Os subprodutos cárneos apresentaram resultados satisfatórios quanto à avaliação microbiológica, correspondendo aos padrões exigidos pela legislação brasileira.
Cerca de 70% das pessoas já tinham consumido carne de capivara, e quando consultados sobre a opção de compra, 90% dos consumidores responderam que comprariam o produto. As notas em geral corresponderam a “gostei moderadamente” (7), sendo consideradas satisfatórias (Tabela 1).
Em geral não há diferenças significativas no perfil de aminoácidos das carnes e o teor protéico varia entre 18% a 22%, ocorrendo porém maiores variações no teor e perfil lipídico, os quais determinam as diferenças de qualidade nutricional das carnes. Os teores de gordura no músculo foram baixos, de 0,5% no lombo (variando de 0,08% a 3,37% entre os cortes, com média de 0,83%), sendo cinco ou mais vezes inferior aos encontrados no lombo de bovinos Nelore (2,5%), suínos (3%) e ovinos (6,5%).
A análise do perfil de ácidos graxos revelou maior insaturação e concentração de ácido αlinolênico para adultos (55,4%/2,48%) em relação a jovens a campo (41,9%/0,73%) e a jovens sob ração (51,4%/0,14%), respectivamente. Apesar de ter sido encontrado em relativamente baixas concentrações, a média geral de 1,12% para ácido linolênico ω-3 em capivaras é superior à encontrada para a raça bovina Angus (0,6%). Embora em valores mais baixos, se comparados ao presente na linhaça que tem 45% de ácido linolênico, 17% de ácido linolênico têm sido encontrado no óleo de capivara. Em outros trabalhos a concentração de ômega-3 em músculo de capivaras chegou a ser 8,6 vezes maior que nas carnes tradicionais.
O ácido oléico, rico no óleo de oliva, que tem 63% do monoinsaturado ω-9, também tem um papel na melhora do perfil lipídico no sangue humano, sendo especialmente hipocolesterolêmico. Para o ácido oléico os valores encontrados na carne de capivara (35,24%) foram semelhantes aos das espécies tradicionais.
Os resultados do presente estudo ratificam a qualidade da carne e da gordura de capivara obtida em sistema de criação para o consumo humano e prospectam o potencial tecnológico para o mercado, abrindo novas perspectivas para sua utilização, ampliando o rol de subprodutos que podem ser elaborados.
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